domingo, 26 de dezembro de 2010

A grande conversa

Tomou assento ao meu lado. Era um fim de tarde comum por aqui, mas para nós, estrangeiros do mesmo país, era mais um retrato lindíssimo de um céu que é diferente de todos os outros. Temos os bons olhos de perceber os defeitos e a dificuldade de conseguir lidar com eles. Talvez por isso acabemos encontrando coisas menores para valorizar, coisas que não temos em nosso país. Engana-se quem pensa que de Norte a Sul vivemos em uma mesma nação. Para aqueles que se contentam com bandeira, hino, timecos de futebol ou programação da TV, tudo bem. E mesmo esses - maioria, é verdade - nutrem os mais profundos preconceitos e discriminações pela gente de toda parte. Não é preciso ir para outra Região, para outra raiz embrionária ou de costumes. Os nortistas odeiam os sulistas porque pensam que estes os odeiam por não os conhecerem. É por aí, desconhecemos pela imensa distância social e cultural, agravada pela física. Mas os sulistas odeiam-se entre os próximos, assim como os outros do Brasil. Acho que é algo a se pensar. Matutava tudo isso enquanto via as crianças feias e magras brincando de não fazer nada, brincando de serem crianças na rua, pois curiosamente é aqui onde elas têm espaço para isso. Na casa delas, nunca foram tratadas como tais, e depois temos de ouvir as famílias reclamando.


Na Pedreira, bairro miserável (não se chama de favela pelos recortes de classe média-alta entre os canais e casinhas horríveis) de Belém do Pará, as crianças passam muito tempo na rua. As pessoas daqui dizem que é devido à violência, estufam o peito enquanto cantam: "No centro não se pode fazer nada do que fazemos aqui, andar à noite, tomar uma cervejinha com os amigos ouvindo nossa música até a hora que bem entendermos, lá é violento, aqui ainda se tem um pouco de sossego". Mas não é por essa sensação que elas ficam na rua. Elas não querem ficar em casa.

Tenho ido correr praticamente todas as tardes, preferencialmente sob o pôr-do-sol desse céu belíssimo. E finalmente cheguei à conclusão de que realmente esse é o bairro que resume essa cidade. As crianças nós podemos entender. Mas os adolescentes, jovens, adultos... é difícil. Eu já conheci outras periferias, já li sobre as periferias, cortiços e guetos antigos, de várias épocas. A música tem uma função linda na vida de todas, e principalmente, de todas essas pessoas. As canções trazem saudade, cultuam seus mitos sociais, malandros, vigaristas, o tipo de gente que tenta fazer o que pode com o que lhe é dado. Entregam-se às coisas belas da vida, aos sonhos, encontram espaço para protesto, para ativismo e organizar-se através de ritmos. Lembram-se de seus antepassados. A música é a palavra que todas essas vozes não sabem dizer. Mas não é o que acontece aqui.

Compreendo que não seja só aqui, há músicas demais que não falam absolutamente nada, mas é difícil aceitar que as pessoas percam seus momentos familiares, de descanso e que deveriam somar algo, ou simplesmente ajudar a aguentar, com letras que exprimem... nada. Que nem ao menos trazem palavras inteiras, ideias melhores. Dotadas de letargia e má vontade. As pessoas estufam seus peitos para cantar meros grunhidos. Elas têm todo o direito de fazer o que bem entenderem e escutarem o que gostam. Mas é só isso o que fazem sob todos os dias em que o sol se puser. Não se vê melhora, progresso. Uma avenida má projetada está há 3 anos em obras, e nunca termina. E este é um problema que aflinge os rabiscos da classe média nessa pintura feia, rabiscos que se somam à confusão da carência em todo tipo de políticas públicas. Eu sempre digo e ainda não vi erro, que a vida de uma pessoa que vem morar aqui se divide em Antes e Depois de Belém. Nós adoramos dar esses marcos às coisas, aos acontecimentos decisivos. Mas, à guia da calçada, a figura alta parecia conversar comigo por esses pensamentos. Uma conversa muda em meio ao barulho e caos do final da tarde. Mães com suas pencas de filhos voltando com pão e algumas sacolas com os gêneros mais apreciados daqui. Muitos homens em suas bicicletas, contra todas as leis de trânsito, que em terra sem lei, são apenas piadas que os fazem rir ante seus protestos. Até que detive minha atenção naquilo que ele tinha a dizer. Com muito ardor e sacrifício consegui me livrar das ideias do que uma pessoa vai dizer antes que fale. Só assim se pode aceitar ou recusar aquilo da maneira correta.
E com uma conversa, que tantas vezes apareceu aqui neste blog, permeadas por silêncios, pensamentos e gritos, aquelas formas de expressão de que tanto gostamos, meu ano de 2010 começou a se encerrar. E a insistência dessas conversas quer deixar a todos vocês o diálogo. Dos dedões, das garotas apaixonadas que por fim caíram, de mim para comigo mesmo através de cartas, e finalmente, de nós, P. e B. do Sp/Pa com todos vocês. Um diálogo mudo, onde vocês falam por nós em suas cabeças e respondem nelas também. O diálogo mais bonito que eu posso oferecer. Quando o homem começou a falar, eu comecei a perceber o próximo ano.

P.

2 comentários:

  1. Não tinha visitado o blog ainda,muito legal a idéia de duas perspectivas tentando uma fusão complementar.tratando-se do texto,muito boa a descrição do fato social urbano.Do ponto de vista filosófico muito boa abordagem do paradoxo que é o ser humano e seu "conformismo". o texto mostra a indignação de ambos e um certo desabafo.

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